Considerações sobre A face obscura do passado

TÍTULO: “A FACE OBSCURA DO PASSADO”

GÊNERO LITERÁRIO: Novela

AUTOR: Aírton DeSouza

CONSIDERAÇÕES

                                                         Por Delcira Soares

Alego suspeição para falar da riqueza de reflexões que permeiam o texto, decorrentes, em grande parte, do uso do foco narrativo em terceira pessoa, recheado de discursos indiretos livres (meus preferidos!), o que permite ao leitor “invadir” o pensar de todos. Pincei muitas delas, anotei, porque são preciosas. Leitura é isto: é transportar para o próprio mundo o que se lê nos livros. Todos os personagens têm uma espécie de “segredo” principal, que vem à tona através da narrativa e de suas próprias ações e reflexões.

Diga-se, de passagem, que a linguagem do texto é perfeita, cheia de belas construções frasais, com o cuidado de utilizar o tom coloquial em conformidade com o nível cultural dos personagens.

Há universalidade até nos nomes dos personagens. Nomes nacionais, utilizados também na cultura do povo português, mas também nomes de outras origens, em perfeita conexão com o tipo de persona a que se dá vida.

Ainda em relação aos personagens, nota-se uma evolução em muitos deles, em especial no protagonista, em todos os sentidos, algumas tenuemente perceptíveis. O texto “transpira” tal crescimento. Ressalto a capacidade crítica do personagem principal sobre si mesmo. Isso fica muito evidente quando ele se surpreende com a solidariedade inexplicável que sente em relação à história da empregada, a ponto de se sensibilizar com a causa e tomar a decisão de desvendar o que teria ocorrido com o seu filho, inclusive realizando pessoalmente as ações de procurar o rapaz em outra paragem. Ele não manda alguém ir. Ele não contrata alguém para procurar. Ele vai. E faz. Laivos da humanidade adquirida.

Cito aqui um pensamento ambíguo que tive na descrição, quase inicial, do café preferido do protagonista, que incluiu um pão de queijo. Inicialmente questionei-me: isso tira a universalidade do texto, por ser algo tão peculiar, de uma região tão única do Brasil? Imediatamente veio-me à mente o grande Guimarães, que elevou sua obra à universalidade, mesmo falando de coisas tão singulares, próprias do agreste nordestino, inclusive com regionalismos e preciosos neologismos.

A face obscura do passado Airton DeSouza

Para adquirir este livro, acesse: Clique Aqui

A atemporalidade é outro fator notável no texto. Não há datas. Há sutis sugestões de estações, de etapas do dia, de contrastes entre os dramas vivenciados e o próprio tempo interno de cada um. Em alguns momentos é tão perfeita a simbiose dos tempos externo e psicológico, que chegam a se confundir.

Também não há localização espacial. Há o contraste, muito bem estabelecido, entre os valores e os costumes de sociedades agregadas em cidades pequenas e em cidades grandes. Os vinhos preferidos do protagonista vêm de países vizinhos (total anonimato sobre os tais países).

Os fatos podem, portanto, terem ocorrido em qualquer lugar (e, por extensão e sobretudo, dentro do íntimo dos próprios personagens). Chamo a atenção para vários espaços tão bem descritos no texto: o banco da praça, os bares das cidades pequenas, a livraria, a viagem de trem (sou suspeita, porque adoro), a apreciação das paisagens… Nos espaços estão sempre inseridos fatores psicológicos dos personagens, que dão mais vida a eles, “intimizando-os”. É possível visualizar, como em uma fotografia, as minúcias das cenas que se passam.

Muito boas as abordagens sobre assuntos polêmicos: o uso de drogas, por exemplo. Chega a ser até “delicada” (obviamente para não ferir suscetibilidades e/ou passar ideias preconceituosas) a referência sobre isto no texto. Cito ainda a influência nefasta de determinados seres e do meio ambiente no comportamento das pessoas (a moça que “estragou” a vida do filho da empregada, por exemplo). E deliciei-me com a postura frente às “panelas fechadas” que são as academias, não permitindo a ascensão de escritores talentosos, porém desconhecidos e/ou não famosos (esta crítica não foi velada e muito menos amenizada, ficou muito explícita). E recorro ainda à transferência de culpas tão em moda atualmente (ou sempre esteve em moda?) que as pessoas utilizam para desculpar, disfarçar, amenizar e até mesmo tentar tapar os próprios erros. É a salvação da própria pele a qualquer custo. O protagonista erra ao interferir no texto do colega com pretensões acadêmicas, desmascarando-o e humilhando-o em público (ainda era vaidoso!), mas o colega já havia errado antes, ao se apropriar de algo que sabia não ser dele, também em busca da glória. Quem teria errado mais? Ambos se nivelam nesse sentido.

A mescla de passados mais remotos a cenas do momento presente ficou brilhante. Eu sou admiradora desse vai-e-volta. Isso permite muitas possibilidades e muito revela em vários aspectos do passado refletidos no momento narrativo presente. Além de quebrar a estrutura do fluir linear do texto, isso impede uma continuidade que talvez pudesse vir a ser entediante. Poderia chamar isso de analepse, o famoso flashback, tão bem utilizado por muitos bons cineastas?

Diante disso e de tantos outros aspectos, o texto me faz chegar a várias conclusões e menciono algumas:

Os reais valores não estão presentes no mundo das cidades grandes, onde tudo é meio diluído, anônimo, as pessoas não têm voz, onde só têm vez os que têm prestígio. Ao abordar este aspecto dentro do mundo literário, por extensão também se pode transportar tal ideia para outros comportamentos da raça humana, que busca o reconhecimento sem pensar na valorização pelo mérito, tendo o objetivo de crescer, de aperfeiçoar-se enquanto pessoa, mas por vaidade, por poder, por fama etc. Isso ocorre nos domínios da política, no campo financeiro, no meio artístico, entre outros. Geralmente a regra é ostentar para “causar”. E o fim a ser alcançado é a inveja nos semelhantes. É a inversão de valores. É o esvaziamento dos reais valores. É o vazio existencial.

As pessoas estão em busca de si mesmas em “lugares”, mas fica claro que não se encontram neles, porque o “lugar” está dentro de si. Quem não consegue encontrar este “lugar”, acaba tragicamente (seja de forma física ou emocional).

O passado bate também à porta do leitor, na daquele que realmente se transportará para dentro do texto e, posteriormente, extrapolará o branco-preto das páginas para o colorido (nem sempre!) mundo exterior (que é o reflexo do mundo interior). Mesmo que a única cor percebida seja a cinzenta.

A redenção pode existir para todos, a partir da remissão dos próprios “pecados” através de alguma forma de refazimento das atitudes pretéritas menos felizes. Quem não consegue essa atitude quase sobre-humana e, de certa forma, até heroica (porque significa vencer a si mesmo, ao pior inimigo, que é o que habita dentro do ser humano), existirá (e não viverá) para sempre atormentado.

Muito profundo em relação ao que se propõe. Entre todos os “pecados” cometidos por todos, o mais grave é a vaidade, o que vai ao encontro de grande parte da humanidade atual. Quase ninguém quer cultivar a humildade, quase todos priorizam a vaidade.

Conjecturas BEM pessoais

Você é tão bom em construir os “silêncios” do texto, que eu exploraria mais tal aspecto. Falo daquele silêncio que fica tão bem explícito nas entrelinhas do que não é dito, mas é captado e entendido, daquele que vai do olhar ao coração. Talvez esquadrinhar isso no aspecto ligado à relação do protagonista com a empregada, quando de seu retorno a casa logo após descobrir o que ocorreu com o seu filho (apesar do pacto silencioso que fez com os informantes do paradeiro do rapaz). Parece haver um vácuo aí. Foi proposital? No sentido de reiterar o papel do silêncio nas relações? Acho que é necessário inserir algo depois do retorno, de forma que o silêncio seja o cúmplice principal de ambos. Ela tem que “perceber” os “frutos” colhidos pelo protagonista na viagem, mas sem qualquer palavra, para também aliviar o seu íntimo e prosseguir. Mas sem questionamentos. Penso que isso aprofundaria a relação entre os dois, fortalecendo mais ainda os elos familiares que eles desenvolveram. Para mim, foi o laço mais importante da construção de relações humanas entre dois desconhecidos. Ambos muito diferentes em todos os aspectos, mas apoiando-se um no outro, cada um à sua maneira. Interessante que, mesmo ensimesmado em seus dramas íntimos, o protagonista é sensível e humano ao se preocupar com o próximo. Demonstra que aprendeu com os erros, uma vez que, no passado, não moveu um só dedo para pelo menos questionar o abandono pela amada (seria amada?) em virtude de seu egocentrismo. Este aspecto do silêncio “entendível” ficou bem acentuado também na relação com o detetive.

Vinho e uísque. Talvez eu optasse apenas por um tipo de consumo de bebida para o protagonista (obviamente escolheria o vinho). Por quê? Porque talvez isso tornaria o protagonista mais marcante ao juntar à sua reclusão apenas uma escolha. Isso o tornaria mais intransigente até nisso? Ou as duas opções demonstrariam que ele se tornou mais brando em relação a si mesmo, menos ensimesmado, permitindo-se outras coisas? Poderia até também ligar isso a algum aspecto de seu passado. Ainda: manter as duas bebidas não sugerirá ao povo moralista, tradicional e por natureza bem soberbo que o protagonista é um alcoólatra inveterado e, portanto, meio sem crédito em seu comportamento? Reconheço que em nenhum momento a narrativa ao menos insinua isso. Mas, cabeça de outrem…

Os nomes dos personagens. Não ficaria mais impessoal e, consequentemente, mais universal não lhes dar nomes próprios, mas nomes em conformidade com a função desempenhada? O Escritor, o Detetive, a Empregada, a Pianista etc? Entretanto, são muitos… Seria isso apropriado para o gênero?

Encerro com uma frase extraída do seu texto: “Ninguém consegue fugir de si próprio.” A autossabotagem existe, mesmo que saibamos disfarçá-la bem. Mas ela é in e não out. De forma alguma se pode empreender fuga da própria consciência.

Finalmente, vejo a projeção de você enquanto ser humano em toda sua completude (acho que todo bom escritor faz isso, por mais que tente ocultar com os elementos de ficção; afinal, escrevemos o que vivemos!).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *